Capítulo 1
O cheiro de carne fresca já não me deixava com tanta fome. Pelo menos não deveria. Afinal, eu já era experiente o bastante para aguentá-la. Mas aquele odor era tão singular e tão cheio de vida... Eu teria jurado que se tratava de uma produção excessiva de feromônios em uma fêmea humana qualquer, isso se o odor viesse de uma mulher.
Um garoto, de uns 18 anos ou menos, sentou à minha frente na fila do cinema - maldita hora para assistir Harry Potter e as Relíquias da Morte Parte 2. As luzes ainda não haviam se apagado, então era possível vê-lo. Ele tinha pele clara, cabelos castanhos e curtos, corpo atlético - talvez frequentasse uma academia. Eu inspirei novamente para me certificar de que o cheiro vinha mesmo dele. E realmente vinha.
Era uma mescla de odores que eu nunca sentira na vida. O perfume dele era feito de âmbar, cedro seco, maçã, com notas de eucalipto e musk. Mas eu me concentrei em sentir o cheiro próprio dele, o que foi fácil, pela minha experiência. Era um cheiro animalizado, com certeza, como se fosse mais humano do que os outros ao redor. Podia ser comparado a musgo de carvalho, Chipre e cachorro molhado, ao fundo, quase imperceptivelmente. Era isso. E era isso que me chamava a atenção.
Depois de certo tempo, percebi que não era fome, exatamente. Eu era um lobisomem confuso naquele momento. Se não era fome, o que seria? Nunca em minhas andanças em forma humana ou de licantropo (meio lobo, meio homem) eu me deparei com algo assim. Mas sabia quem já deveria ter se deparado...
A decisão de sair do cinema em disparada hesitava a invadir minha mente, apesar de ser o certo a fazer. O cheiro daquele jovem me prendia. Algo explodia em minha mente, algo que todos um dia já sentiram na vida: amizade.
Eu nunca vira aquele garoto, mas de alguma forma sabia que ele era meu amigo. Meu melhor amigo, talvez. Mas eu não o conhecia, droga, como podia ser amizade? Mas a amizade é uma coisa a ser respeitada e louvada, especialmente entre os lobisomens...
- Hey, Dean, segura meu lugar aí... - gritou um garoto magro para a fonte das minhas incertezas.
Dean.
Era esse o nome do garoto à minha frente. Comecei a me concentrar em ouvir seu coração - eu até já duvidava se ele era ou não humano. Tinha um ritmo normal, como os dos outros humanos na sala de cinema. O meu, ao contrário, era acelerado e forte demais. E ficava mais forte quando eu me transformava em licantropo.
O cheiro novamente me chamou a atenção. De repente, eu senti um desejo de me transformar, o que só acontecia diante a uma presa irresistível ou em um momento culminante de raiva ou prazer. Não era forte a ponto de eu começar a rosnar, mas era necessário controle, com certeza. Mais uma coisa estranha para a lista de "O que contar para Jensen sobre o meu dia de hoje."
Jensen era, para todos os curiosos, o pai (lobisomem) da minha família (de lobisomens), que consistia, além de mim, em: o próprio Jensen; meu irmão de criação, Peter; os agregados, tomados como primos, Kevin, Joshua e Marshall; e os ditos irmãos do meu "pai", Axel, Taylor e Arthur.
É. Minha família era constituída de 9 machos. Dizíamos que a única mulher da família, minha suposta mãe, Kristen, morrera em um acidente de avião. Mas, na verdade, eu era órfão. Um vampiro idiota caçou meu pai por medo de resistência por parte dos lobisomens e minha mãe tentou defender seu amado lupino; ambos morrem e eis criança lobisomem órfã. Malditos Volturi. Maldito Caius.
Coloquemos dessa forma: Um lobisomem tem apenas filhos homens com uma humana. É algo ligado ao cromossomo Y, então só machos são lobisomens. Existem dois tipos de lobisomens: os Nascidos e os Mordidos. Os Nascidos eram como eu, filhos de um lobisomem, com uma linhagem mais forte e mais lupina, por assim dizer. Os Mordidos são, como o próprio nome diz, homens que se tornam lobisomens depois de serem mordidos por um lobisomem na forma de licantropo, sendo menos fortes e um pouco menos conscientes.
E uma criança, nascida ou mordida, só desenvolve as características de licantropo depois da puberdade. A primeira transformação ocorre obrigatoriamente em uma noite de lua cheia; depois disso, podemos nos transformar livremente, independente da lua, mas só após o crepúsculo. Durante o dia, estamos sempre em forma humana.
Os Nascidos são raros, pois, quando um lobisomem em forma humana é submetido ao prazer, ele toma a forma de licantropo, e é necessário um controle inumano para não se transformar. Seria improvável, se exemplos como eu não existissem.
Logo o odor de Dean me tirou dos meus devaneios. Eu deveria ir e contar tudo a Jensen o mais rápido possível, mas não conseguia.
As luzes se apagaram e as propagandas e trailers começaram a ser exibidos.
Eu enxergava muito bem no escuro. O corpo humano de um lobisomem conserva muitas características lupinas da forma de licantropo. Inclusive a força. Nasci a 23 anos atrás. Parei de envelhecer com 17 anos, quando me tornei um verdadeiro lobisomem. Mas aos 13, eu já levantava um carro sozinho. Todos os lobisomens, bem como os vampiros, são imortais. E ambos morrem da mesma fora: esquartejando e queimando os pedaços.
Jensen era um Mordido e já tinha 140 anos, perfeitamente ocultos sob um corpo de um homem de 30 anos.
As propagandas acabaram e o filme logo começaria de vez. O silêncio se fez presente na sala do cinema. Os respirares e batimentos cardíacos daqueles humanos se tornaram calmos.
Eu me concentrei no filme, o suficiente para notar que é bem fiel ao livro e que é talvez o melhor filme de toda a Saga Potteriana. O filme me distraiu a ponto de eu não pensar mais no cheiro de Dean, apesar de sentí-lo fortemente.
130 minutos depois, ao fim do filme, as luzes se ascenderam e todos começaram a sair.
Dean se virou. Os olhos dele eram verdes e ele era bonito - se bem que eu não tinha auto-estima, então qualquer um era mais bonito que eu. Seu rosto se fixou em minha mente.
Eu iria decidir o que fazer depois que ouvisse o que os anos de experiência de Jensen diriam sobre esse fato. Voltei para casa correndo, depois que não era mais visto, rápido como só os lobisomens eram, ainda em forma humana.
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